Projeto inovador no Pará, o circuito de ecoturismo comunitário convida a conhecer, de forma genuína, comunidades ribeirinhas do Baixo Arapiuns, na região de Santarém.
É a oportunidade de se aproximar do modo de vida e da cultura de uma gente forte e fascinante.
Por Bruna Tiussu
Fotos Chema Llanos
De chapéu de palha, óculos escuros e um sorriso grudado no rosto, Maria Odila Godinho ajeita os últimos detalhes no barco ancorado no porto de Santarém, no Pará. Recebe com empolgação os viajantes e os observa inspecionar o ambiente que será seu meio de transporte, hotel e restaurante durante quatro dias. Ela indica o melhor canto para cada um armar a rede, confere o movimento na cozinha e dá o comando para a embarcação zarpar. Aos 64 anos, esperta como uma menina, Maria é a principal guia do circuito de ecoturismo comunitário que visita unidades de conservação do Baixo Arapiuns. Região que não é só seu lar, mas seu universo, seu maior orgulho.
Há quem viva uma experiência na Amazônia e se encante principalmente com sua floresta abundante e a rica diversidade da flora. Outros são surpreendidos sobretudo pelos seus rios de dimensões oceânicas, cujas águas chegam a ser mais transparentes que o mar de muitas praias famosas do Brasil. E ainda existem aqueles que ficam maravilhados com o seu povo, uma gente autêntica, cativante e extremamente forte – eu, por acaso, me incluo neste grupo.
Felizmente, Maria é apenas a primeira oportunidade de se aproximar dessas pessoas que parecem se esconder nos confins da região Norte –
importante braço do Tapajós, o Rio Arapiuns segue a Oeste, chegando perto do limite com o Estado do Amazonas. Além de guia, ela é a presidente da Turiarte, Cooperativa de Turismo e Artesanato da Floresta, que tem como objetivo justamente diminuir a distância entre a população desta porção amazônica e a do resto do mundo. Em parceria com a ONG Saúde & Alegria, que atua ali desde 1987 assistindo 1.200 famílias, o grupo de 54 mulheres e 16 homens hoje consegue levar turistas para algumas comunidades ribeirinhas, onde apresenta o modo de vida, a cultura e a energia do povo da floresta.
Anã, local em que Maria nasceu e onde mantém sua casa, é a primeira parada do roteiro – são 3h30 de viagem desde Santarém. Como é comum por ali, as 96 famílias da comunidade vivem essencialmente do extrativismo e da agricultura de subsistência. O fomento de fontes de renda e de alimentação, aliás, são dois dos pilares mais trabalhados pelo Saúde & Alegria, que dá subsídio técnico para a manutenção de um viveiro de mudas e para o manejo de abelhas, entre outros projetos. Há dez anos trabalhando em seu apiário de melíponas (espécie nativa que não tem ferrão), Alvair produz 90 litros de mel por ano e vende tudo – o litro custa R$40. “Ainda não fazemos com própolis só porque não conhecemos a técnica. Se não…”, diz ele, ávido para melhorar o negócio.
As mulheres da família de Alvair, por sua vez, atuam em outra frente apoiada pela ONG, a de criação de peixes em tanques flutuantes. Algumas “comadres” se juntaram e fundaram o coletivo Musa, Mulheres Sonhadoras em Ação, e, com a ração correta e os devidos cuidados para driblar a acidez do rio, não ficam mais sem tambaqui para assar desde 2005. Acostumada a acumular funções, Maria Odila também é a presidente deste grupo: “A mulher é movida pelos sonhos. Sempre temos um objetivo para correr atrás. E nós corremos, viu”.
O dia em Anã termina em terra firme. Com uma hospedaria construída há dois anos – de madeira e alvenaria, tem telhado de palha, espaço para 20 redes, banheiros e sistema de energia solar –, o barco só volta a ver os viajantes na manhã seguinte, para mais 2h30 de navegação até a comunidade de Atodi, que abriga 46 famílias.
Lá, os nativos dão uma verdadeira aula de engenharia cabocla ao demonstrar o processo da farinhada. Dirleide – que aprendeu a técnica com a mãe, que aprendeu com a avó, e assim sucessivamente – esbanja habilidade ao moer a macaxeira, separá-la do tucupi, secá-la no tipiti (um espremedor de palha trançada), peneirá-la e, por fim, tostá-la no forno artesanal. “É simples, menina. Quer tentar?”, pergunta-me ela, que então ri, meio tímida, da total falta de jeito da moça urbana.
O passeio em Atodi ainda inclui a chamada trilha dos castanheiros: 9,5km de caminhada pela floresta nativa, para o deleite dos visitantes. Ou simplesmente o trajeto que leva até os roçados, segundo os moradores. Castanheiras, pequizeiros e árvores com propriedades medicinais, como o barbatimão, são vistas ao longo do percurso que termina com um banho de igarapé. Apesar de também contar com uma hospedaria, o repouso é reservado ao barco. Afinal, outro ponto alto da viagem é dormir com o balanço da embarcação, o barulho leve do rio e o vento oportuno para aplacar o intenso calor de 30 graus.
A premissa básica do turismo comunitário, a de reconhecer os nativos como protagonistas na gestão das ações, é reforçada na visita à comunidade de Arimum. Enquanto alguns representantes de suas 32 famílias esperam o turista na areia, outros estão a postos para demonstrar o método de fabricação do artesanato a partir da fibra do tucumanzeiro, palmeira típica da Amazônia. Para organizar a atividade, eles formaram o Jararaca, cooperativa que os mantém unidos no objetivo de prosperar com o comércio das peças. Hoje, vendem bijuterias, vasos e enfeites para comunidades vizinhas e até para Santarém.
Quem chega ali aprende, primeiro, qual daquelas árvores é o tucumanzeiro – identificá-lo é fácil só mesmo para quem é da floresta. Depois, acompanha a técnica de separação e de tingimento das palhas, para então arriscar fazer sua própria obra de arte. Confesso não ter sido a aluna que esperavam. Distraí-
me com o urucum e as crianças que adoram ganhar um desenho no rosto. Mas não saí de mãos abanando: uma artesã presenteou-me com um pingente feito especialmente para combinar com meu tom de pele. Um gesto delicado que ajuda a compor o quadro de lembranças dessa gente cativante.
Post, janeiro 01, 2016
by Equipe Azul
in Viagem